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segunda-feira, 15 de março de 2010

Bondades incontadas


BONDADES INCONTADAS
O carnaval está chegando. Salvador começa a se embalar ao som de trios elétricos reais e imaginários. As pessoas caminham em ritmos diversos. A ilusão de felicidade, mais uma vez, pode ser vendida à mancheias. O futuro dos pulos torna-se algo querido por parcela da população desejosa por ventos novos. A Justiça Penal continua seu caminhar, inabalável. Apesar de ninguém querer, em uma festa descomunal como o carnaval, podem acontecer alguns percalços. Evite andar sozinho nas ruas. Não se vitime. Não saia de casa sem uma documentação comprobatória de quem é você. Evite quaisquer espécies de confusões. Engula os desaforos. Caso seja preciso, leve–os para casa embalados para presente. Chame a polícia sempre que precisar. Porém, principalmente, saiba que a Justiça Penal não tem um banco de dados das coisas boas que os cidadãos já fizeram na vida. Ao inverso. Conheci uma pessoa que guiava a vida por conta do sangue que possuía. Por ter sangue do tipo O negativo, doava constantemente. Não bebia álcool em hipótese alguma, não fumava, não trocava de parceira sexual, evitava tomar remédios, mantinha uma dieta rica em frutas, verduras e fibras. Fazia tudo que os médicos indicavam para que o sangue pudesse ser doado da melhor forma possível. Doação de sangue, melhor chamar de caridade invisível. A pessoa sempre indicava um Quero que a pessoa que receba meu sangue sinta minha bondade, meu amor, meu carinho. Contou-me, entre uma lágrima e outra, que já houvera doado mais de quarenta vezes na vida. Além disso, ajudava no orfanato do bairro, cheio de crianças com mães, sem pais, sem paz. Já havia quinze anos de auxílio. Doava roupas, comida e tempo. Lavava os banheiros, limpava a calçada, varria as sujeiras. Mas, infelizmente, foi preso por, supostamente, ter entrado em luta corporal com outra pessoa. Disse, para mim, um Não tive culpa, ele estava louco de drogas. No entanto, imediatamente, como em um passe de mágica, tornou-se “Beto Calango”. As alcunhas são colocadas para haver uma despersonalização do ser humano. Há, até, pasme, local no questionário policial no afã de indicar qual é o vulgo das pessoas. Quando não existe, certamente, é inventado. Imediatamente, foi constatada a existência, nos bancos de dados da Justiça Penal, que “Beto” havia brigado outras vezes, há alguns anos, quando quase adolescente ainda. Foi o bastante. Sentando de cuecas no canto da sala barulhenta. Cabisbaixo, envergonhado, triste. Pessoas passavam e nem notavam o ser humano caridoso, bondoso e meigo que jazia no canto sujo da repartição pública, lugar de serviço ao público. Brigara por conta de um desaforo qualquer. No entanto, insisti eu, sem entender, Por que você brigou Roberto? Por que não renunciou a essa identidade de lutas corporais? Sem querer ser chato Doutor, nem querer interromper a sua conversa com este homem, disse-me um dos policiais presentes, você conhece esse homem profundamente? Respondi um Eu nem me conheço profundamente, policial...faço análise nesse sentido, ora. Como irei conhecer um outro ser humano com a profundidade que você indica na sua pergunta? Ah...por isso, respondeu, maneando a cabeça e saindo. Colocado no xadrez, sem direito a elucidar as vezes que tinha feito bem à sociedade, Roberto ficou encarcerado tempo bastante para qualquer um. Após amealhar documentos e carteiras de identificação, comprovantes de residência e de trabalho, não consegui juntar ao pedido as inúmeras maneiras do seu serviço, com galhardia, hombridade e amor à sociedade através da caridade, tão desejada atualmente. Não consegui identificar quem teve, por conta do sangue de Roberto, conseguido uma sobrevida. Não tive forças para alcançar a filha que teve mais um tempo de vida perto do genitor, adoentado, necessitado de sangue. Não vi seu sorriso de agradecimento, não senti seu abraço de “muito obrigada.” Ninguém perguntou qual bebê foi salvo porque teve, no momento da necessidade, sangue fresco, saudável, forte. Nenhuma declaração foi feita pelas crianças do orfanato inominado. Nenhum pai deu sua deixa, nenhuma mãe agradeceu com algum testemunho. Ninguém indicou ter sido ajudado. Ninguém. Roberto invisivelmente ajudou. Invisível permanece. Nada há nos bancos de dados da Justiça Penal que comprovem as argumentações de responsabilidade social indicadas acima. Quanto houve de equilíbrio à sociedade oriundo das mãos de Roberto? Quantas lágrimas foram secadas por conta do trabalho caritativo no orfanato? Quantos sorrisos fizeram existência por razão das noites bem dormidas e equilíbrio na vida para ocorrer as doações de sangue? Quase soa como chalaça ter doado sangue e ajudado em orfanato. Isso não é contado na Justiça Penal. Isso soa como “testemunho de canonização”, como alguns costumam falar quando há uma testemunha, no processo penal, que nada sabe a respeito dos fatos indicados na petição inicial da ação penal mas indica a bondade existente do acusado. Tempo enterrado em lembranças sorridentes de crianças sem identificação. Incontadas. Inexistentes para a Justiça Penal. O carnaval não fala a verdade em sua etimologia. Nem tudo vale pela carne. Nem tudo vale pelo sangue de seres humanos. Devemos criar um banco de dados das pessoas que equilibram a humanidade. Mostrando as vezes que atos bondosos foram feitos, sem pieguice, objetivamente. Elas doam dinheiro, roupas, tempo, sangue. Dão a si mesmas, através de inúmeras atuações, no azo único de equilibrar a sociedade. Isso merece um cumprimento respeitoso. O mínimo de atuação da Justiça Penal é ponderar, quando há o erro, os acertos existentes em a vida do ser humano alcançado pela força penal. Talvez o sangue que corra nas veias daquele inquieto policial seja de “Beto Calango”, de alguma doação perdida no tempo. Talvez não. Ainda concordo com Antônio Vieira, em um de seus sermões, “Quando o homem foi bom e é ruim, julgam ele pelo que é. Quando foi ruim e é bom, julgam ele pelo que foi. Quando foi bom e é bom, julgam pelo que poderá vir a ser”.

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