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Bem vindo, são escritos de reflexão, apenas. Espero contribuir com seus pensamentos. Estou no urbanofelixpugliese@gmail.com

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segunda-feira, 15 de março de 2010

Entrevista ao jornal "Tribuna de Defesa"



Entrevista concedida por telefone, em 26 de maio de 2007:

Tribuna de Defesa: O que o senhor achou do menor criminoso sair ileso de prisão no caso do arrastamento da criança no Rio de Janeiro?
Urbano Félix Pugliese do Bomfim: Acredito que a questão seja muito mais profunda que meros arremedos midiáticos de resolução da violência externados por parcela dos pseudo-sábios do agora.
TD: Mas, o senhor discorda da maioridade penal ser rebaixada para 16 (dezesseis) anos?
UFPB: A questão perpassa diversos matizes. O primeiro é a questão da inconstitucionalidade do tema. O artigo 228 da Constituição da República indica a idade de 18 (dezoito) anos, os doutrinadores são assentes em indicar ser cláusula imutável – pétrea – e o artigo 27 do Código Penal reafirma a Constituição. Há um consenso mundial ao derredor da idade de 18 (dezoito) anos. As Regras de Beijing de 1985 e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989, influenciadoras do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei n. 8.069/90, são consensuais neste sentido. Ou seja, apesar da mídia nos impor, goela abaixo, conceitos, caracterizações e falsos conhecimentos, os especialistas da área indicam que a ferramenta não é, tão só, punir os adolescentes e aumentar-lhes as penas.
TD: Por favor, explique melhor.
UFPB: Os menores estão em um verdadeiro “Agogê” da pós-modernidade. Jogados ao léu. Ao relento. Sem perspectivas. Baixa escolaridade. Pais sem escolaridade, avós da mesma forma. Sem acesso à cultura, lazer, escola, amor, carinho, afeto, compreensão. Pergunto-me como agiria se estivesse em mesma situação. Colocar milhares nas cadeias superlotadas da contemporaneidade melhorará a situação dos chegantes? Não há lugar para todos. Há de haver aplicação de recursos públicos em outras áreas – como educação, saúde, saneamento e melhora no nível sócio-cultural dos adolescentes – . Ultrapassa, desta forma, a simplicidade de aumentar as penas de prisão e fazer leis duras neste sentido e resolvido o problema da violência. Muita ingenuidade. Gostaríamos que a magia existisse, conforme pregado às escâncaras por alguns. Mas, não há. Destarte, o trabalho em prol da civilidade deve ser o mote do contemporâneo estímulo à paz.
TD: A culpa é da sociedade?
UFPB: Clichês não ajudaram e não ajudarão o entendimento da matéria. O direito penal é violento. Os educandos em situação de risco precisam de muito mais, por causa da situação especial que vivem, que violência institucionalizada. Os adolescentes, em verdade, são internados - leia-se: presos - por que o Estatuto da Criança e do Adolescente assim afirma. No entanto, têm de ser soltos aos 21 (vinte e um anos). O processo de internação deve ser temporário por que é a necessidade que se impõe.
TD: Professor, é justo que um menor de 17 (dezessete) anos que participe de um homicídio e estupro fique só até os 21 (vinte e um) anos na cadeia? Enquanto o “companheiro” mofe por 30 (trinta) anos na cadeia?
UFPB: A política criminal explica essa situação. Nós optamos por este modelo por causa da situação específica do adolescente-educando. Lembre-se do ditado popular que “quem com porcos anda, farelos come”. A influência do meio é crucial. Colocar adolescentes nas superlotadas – e em crise eterna, neste sentido – penitenciárias, só piorará as dificuldades presentes. Esse direito penal, emergencial e simbólico, já foi tentado, como na truanesca lei dos crime hediondos. E nada foi resolvido na sociedade.
TD: O senhor que falar mais alguma coisa?
UFPB: O medo é uma emoção mundial. Temos medos diversos. Um deles é que a violência bata à nossa porta e diga que entrará. A vida real é muito diferente da vida dos opúsculos românticos. As pessoas não modificam os corações e mentes por causa de normas impressas. Há muito mais a ser explorado. A criança maltrapilha e engendrada de hoje, certamente sem oportunidades de crescimento, sem projetos educacionais para haurir bafos benfazejos, crescerá um adolescente marginalizado e com sentimentos de exclusão – bem verdadeiros, por sinal -. A proposta, pois, é de investimento do Ser Humano. Afinal de contas, como fala sempre o mestre Edivaldo Boaventura, quem não quer investir em educação, que experimente a ignorância. Muito obrigado pela oportunidade ímpar de expor as minhas idéias.

O NASCIMENTO


O pior é enfrentar os sorrisos. Quando o filme Tropa de Elite começou pensei um Pelo amor de Deus a vida é dura. O problema não são as mortes pulando em minha frente, somente. A questão não é o fuzil incrustado nos olhos. As balas perdidas. O trabalho ausente. A vida nas favelas chorosamente dividida entre os amigos e os inimigos. Acredito na Vida, ainda. Os sonhos são problemas maiores. Onde eles estão? Os breves risos de esguelha no cinema foram retumbantes em meu ser. Por que a descrença ainda grassa? Quando o Capitão Nascimento sobe a favela é uma mortificação sequencial. Sorrimos. Não sabemos quem é o inimigo. Como saberíamos? Nunca me foi dito. Não pararam a vida para indicar a mim o manual de instruções do viver. Somos contratantes de uma película cinematográfica pela metade e instransponível. Chorei sozinho. A imbricação do crime organizado com a polícia são panos de fundo de um processo de mortificação do Ser Humano pobre no Brasil do absurdo. Estamos fadados a repetir o erro, por plena covardia de investir no acerto. Não agirei como os corifeus da hipocrisia, viciados em aplausos, sofredores compulsivos da ânsia por tapinhas nos ombros e elogios recheados de fel. Não careço. No dealbar do século XXI, acredito na prisão e na polícia como instituições necessárias. Apenas não creio na prisão dos pobres como solução inexorável das mazelas gerais. Tomo a antipatia no colo. A vida ensinou-me a entender o morrer. Destruição de fantasias tornou-se um mote doloroso. O processo de nascimento da democracia não condiz com as estatísticas demonstradas no sítio eletrônico do Ministério da Justiça. Pobres que presos, perdidos. Todos tentados a tirar a tentação da testa. Tanta tentativa. Tantos tiranos. Em verdade, não insistimos em saber da vida de Wangari Maathai. Não temos tempo. Tudo passa rápido demais. Os sonhos. A vida. A morte. Tudo passa. Até o desejo de término da dor. As vidas tomam os seus lugares e vão, dormindo, até o ponto de chegada. Sem paradas. Sem estações de transbordo. Sem solavancos maiores. Vidas mortas. Vidas sem vida. Vidas petrificadas pelo ânsia de tornar-se o indesejado. A covardia de anunciar a paz como insistência faz coro em meio aos desejos violentados. Os trabalhadores da dor levantam bandeiras. Chorar não faz parte do filme. Para aqueles não violentos: a ingratidão. A paz não pode subir o morro das hipocrisias. Finca, na espera, a própria vitalidade. O direito penal em nada contribui para o fortalecimento das vidas dos fracos. Os débeis sociais continuam a viver a própria vida, sem férias, sem compaixão, sem intervalos. Outro dia um palhaço de circo agradeceu ao público os aplausos, sorrindo. Tirou o chapelão e curvou-se. O nariz vermelho rutilou em meio aos sorrisos. Ele informou que toda a trupe da alegria estava satisfeita. Muito obrigados, gratos, agradecidos por vocês sorrirem. Assim continuaremos a história. O filme passará. Porém, alguns filmes ficarão. Espero, ansioso, o momento da morte da história contada. Sentando na varanda. Vento no rosto. Embalando João Victor, contarei o invivido. Por
mim, por você, por todos.

O sapo Cururu

o sapo Cururu
passava seus dias
a beira do rio a Co-Achar

co-acho isso
coacho aquilo

sapo idiota
não vê as abelhas voar?

se encanta no seu canto
e esquece o encanto de percorrer as cercanias

pobre sapo
tão mesquinho e pequeno

esquece que com o sereno
vem também as honrarias
de poder estufar o peito vermelho
e com ele declarar

coacho isso, coacho aquilo
e todos ao redor escutar

Pequena

Sôul o q soo
Nada + nem -
Apenas 1 pouco de soul
em um corpo mais ou menos estou

AS “NOVAS MULHERES”, OS PRENOMES E O SISTEMA PENAL

O ser humano precisa de uma identidade para - sobre - (viver). Tema controverso e polêmico reside na discussão a respeito da delimitação do quem vem a ser, exatamente, na sociedade atual, uma mulher (ou um homem). Talvez devamos começar a discutir na seara jurídica por que o sistema binário (homem-mulher) perdura tanto tempo. Uma das definições que mutaram nos últimos tempos foi o que nós, operadores do Direito, chamamos de mulheres. Hoje em dia já se faz algumas concessões, outrora impossíveis. Importante frisar que ninguém, na área jurídica, tem a patente da definição do que vem a ser uma mulher (ou um homem). Normas internacionais (ONU) demonstram a necessidade protetiva das mulheres perante a sociedade machista. Muitos países repetem o pálio protetivo das mulheres perante homens agressivos. Algumas legislações, muito novas, definem que as mulheres devem ser protegidas, porque vulneráveis, como a lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Mas, nenhuma delas faz a definição (talvez impossível) do que vem a ser uma mulher na atualidade. Caso pensemos em tempos de antanho, o conceito se plenifica. Bastava olhar o físico da pessoa e o sistema judiciário fazia a definição cabível. Em Direito Penal todos os termos legais devem ter sua definição bem estruturada. Apesar de existirem termos pouco claros (como, por exemplo, “vegetais hidróbios”, em legislação específica ambiental) alguns conceitos ainda não são “definíveis” juridicamente. Quem nos poderá afirmar saber o que é uma mulher na atualidade (obviamente, a tentativa de definição está calcada no obedecimento do princípio da taxatividade, também chamado de princípio da clareza, inerente às normais penais) especificamente? No entanto, continuamos – na área jurídica - acreditando nos pareceres médicos que, ao nascer de um ser humano, indicam (ad eternum) qual é a definição, nesse tema, apropriada. Ainda há outro lado que demonstra ser a discussão de gênero bem diversa da definição superficial do sexo. Masculino e feminino não tem correlação exata com homem e mulher. Salta aos olhos, também, saber que talvez não haja somente dois sexos ou dois gêneros, mas um sem número deles, talvez até mesclados. Há um consenso (talvez comprado) do sistema binário (homem/masculino – mulher/feminino). Simone de Beauvoir indica, no “Segundo sexo”, que “a mulher não nasce, torna-se”. Ou seja, é uma construção social. Porém, se pergunta, na atualidade das incríveis mudanças do século da biologia: quando uma pessoa não pode ser mulher? Por que o Sistema Judiciário insiste em não permitir a construção de mulheres na sociedade, quando as pessoas não são tidas como tal desde o nascimento? Vê-mos, a todo momento, ao contrário da legislação nacional, seres humanos tornando-se mulheres. Acreditamos, justamente, na proposta de construção da mulher no século XXI de uma maneira irrefutável. Caso, por óbvio, o termo tenha de ser ventilado no azo de haurir direitos. Abordaremos, no presente artigo, um aspecto muito importante da construção dessas “novas” mulheres: o prenome. Quando uma pessoa é tida como não mulher quando nasce, tem de lutar, desde sempre, por tornar seu prenome mais palatável aos próprios ouvidos. Difícil se torna para uma pessoa humana, com base no artigo 58 da Lei de Registros Públicos, modificar o seu prenome. Assim, alguém que nasce nessas plagas tupiniquins e é denominado não mulher e recebe o nome de “Etelvino”, por exemplo, tem a força normativa da lei da imodificabilidade como um mote poderoso, apesar das exceções legais. No entanto, segundo autores renomados como Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho, o nome é um direito individual que caracteriza as pessoas. Assim, o prenome deve ser compatível com a visualização da opção de tender para o mundo feminino/mulher, caso assim seja preferível pelo cidadão. Alguém, por exemplo, que tenha optado por ser do gênero feminino e mulher deve, por óbvio, ter o nome modificado, apesar da legislação pátria não ser clara nesse mister. Há alguns projetos legislativos em tramitação para regulamentar o tema, ainda caminhando a passos lentos. Alguns julgadores, para pacificar a sociedade, como Maria Berenice Dias, Elliot Akel, Boris Kauffman e Antônio Mansur, por interpretação da lei protetiva ao cidadão, exortaram decisões favoráveis às mudanças de prenome quando houver cirurgia de “mudança de sexo”. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em muitos julgados, afirmou, em mesmo sentido, a possibilidade de mudança do prenome no afã da adaptação ao visual do ser humano quando houver a cirurgia de transgenitalidade. Apesar de concordarmos com a mudança do prenome nessas ocasiões, elas não devem ser as únicas. As mulheres não são definíveis por conta do físico. Ser mulher é muito mais social e psicológico que circunstâncias de mudanças externas, apenas. Mas, na área penal a mudança do prenome serve para proteger o cidadão mais vulnerável, sem dúvida. Pensemos uma pessoa que se alinhava com o chamado mundo feminino e permanece com um nome masculinizado, por óbvio haverá percalços diários de explicitações e informações sempre muito desgastantes. A socialização torna-se um enfado cruel. O princípio constitucional da solidariedade deve vingar nesses casos e, mesmo não havendo legislação clara a respeito da matéria, o prenome deverá ser mudado, pelo autoridade competente, para o perfeito ajuste com o aspecto sócio-físico do indivíduo. Até por que, quando este indivíduo for preso, por exemplo, deverá permanecer junto aos seres humanos do mundo feminino por que, caso fosse encaminhado, já havendo feito a cirurgia de ressignificação sexual, para uma cela com “homens”, seria, certamente, vulnerável a servir aos detentos através da escravização sexual, mesmo havendo na documentação a sinalização de um nome masculino e a indicação de “pertencer” ao sexo masculino. Assim, a mudança do prenome é mais que um mero ajustamento social, é, também, uma forma de proteção do indivíduo perante as agruras do meio penitenciário.

Quem pedirá desculpas?

Tramitam no Congresso Nacional, entre idas e vindas, inúmeros projetos a respeito do monitoramento eletrônico das pessoas cujas vidas foram interceptadas pelas instâncias punitivas penais. Muitos Deputados fizeram encômios aos projetos, em discursos enaltecedores das supostas vantagens da utilização dos aparelhos eletrônicos. Dizem que monitorar as pessoas, através de aparelhos grudados nos braços, pernas ou cintura, irá poupar o dinheiro do Estado e melhorar a aplicação da lei penal. Entre os argumentos favoráveis e desfavoráveis, neste pequeno artigo, caro leitor, trago apenas um desfavorável. Estive no 9º. Colóquio da Secretaria de Direito Humanos do Estado da Bahia, a respeito do tema, no dia 27 de novembro de 2009. Após o término das conversas, pensei um Quem pedirá desculpas? Explico. Existe uma falsa impressão, naqueles que pouco conhecem do mundo penal, que todos os interceptados pelas instâncias penais (processados, condenados e presos) são perigosos e geram violência social. Penso, especificamente, na idosa senhora que, outro dia, foi presa (algemada, colocada nos fundos do veículo padronizado da Polícia Civil do Estado da Bahia) porque teria, supostamente, efetuado um “gato” nas linhas de energia para o barraco em que vive, em uma região suburbana da cidade de Salvador. Penso que a conduta da velha senhora, caso comprovada, não deve receber quaisquer elogios. Mas, pergunto, a “sociedade” preocupa-se com esse tipo de comportamento como um sinônimo de violência? A resposta, acredito, é negativa. Outro exemplo de pessoa pinçada às instâncias punitivas foi o senhor que foi preso porque retirou a casca de uma árvore centenária para fazer um chá para a esposa que convalescia. Algemado, preso, humilhado. Porém, novamente faço a pergunta já feita, esse comportamento tem algum ponto de contato com violência? No entanto, novamente, o direito penal foi chamado para o trato das querelas. Sem piedade, atuou com a rudeza costumeira. Por outro lado, uma pessoa que não permite, ao cônjuge divorciado, o contato com os filhos (por motivos diversos, às vezes os mais banais), tem o direito penal mantido longe. Qual é a violência maior? Fazer um “gato”, arrancar uma casca de árvore ou não permitir os filhos de manterem contato com o próprio genitor (a). Os exemplos são citados, apenas, para que percamos o mau vezo de associar o mundo penal com a violência, em toda ocasião. Todo fato deve ser apurado, no prazo correto, e de forma minuciosa. Para que não façamos a injustiça de incluir violência estatal (direito penal) em comportamentos sociais que poderiam ser trabalhados com outros tipos de remédios. Assim como o direito penal prendeu as pessoas, acima elencadas, pode, novamente, fazer valer a lei do mais forte (o Estado) no afã de funcionar sem necessidade alguma. Teríamos então a seguinte visão: um ser humano que fez um ato não muito grave seria monitorado com aparelhos eletrônicos, justamente para que não fosse violentado a maior com um aprisionamento. Até este momento, ainda carregamos sorrisos de contentamento. Afinal, estamos impedindo alguém, que não cometeu infrações penais graves, do convívio com o cárcere, sempre aviltante. Todavia, como aconteceu no dia 30 de julho de 2009, na região do bairro de Pernambués chamada “Baixa do Manu”, um jovem de 20 anos, chamado Carleidson Santos da Silva, foi morto por populares. Há, assim, diante de tantos eventos similares, uma tendência, na população baiana, a “fazer Justiça com as próprias mãos”. Aplausos, sorrisos e exemplos para as crianças: matem, sejam violentos, não usem o Judiciário. Pondero no uso menos violento das pulsões. Imagino, porque não quero viver esse suposto episódio em hipótese alguma, uma pessoa que foi alcançada pelo sistema penal (por uma infração penal como as citadas acima) e, por uma “bondade”, ao revés de ir encarcerado, teve a prisão transformada em monitoramento eletrônico. Quando este indivíduo chegar no bairro em que mora, como em todos os locais, os vizinhos falarão: - olha lá, fulano de tal está sendo monitorado. As informações ruins voam como o relâmpago. Os donos do tráfico e demais indivíduos “profissionais do crime” irão fazer a mesma lógica de pensamento. Nosso hipotético cidadão, não muito violento e, por isso, não preso, acaba sendo morto por populares, em mais uma sessão de linchamento nas terras da Bahia. Após a morte, com as lágrimas ainda caindo, o sol se levantará no dia seguinte, por que é natural que assim seja, e a família virá perguntar: - por que isso aconteceu? Eu, no entanto, farei outras perguntas. Sei que o monitoramento eletrônico tem mais da força de pressão das indústrias tecnológicas para haurir novos consumidores de seus produtos que democracia e bondade. Isto porque os presos, normalmente, não são consumidores vorazes de novas tecnologias. Constantemente são muito pobres e sem escolaridade. Ficarei tranquilo do meu papel social. Faço a minha parte. Mas, muito triste, caso aconteça a hipótese aqui ventilada, perguntarei: quem enxugará as imensas lágrimas da família? Perguntarei: quem, finalmente, pedirá desculpas?

Bondades incontadas


BONDADES INCONTADAS
O carnaval está chegando. Salvador começa a se embalar ao som de trios elétricos reais e imaginários. As pessoas caminham em ritmos diversos. A ilusão de felicidade, mais uma vez, pode ser vendida à mancheias. O futuro dos pulos torna-se algo querido por parcela da população desejosa por ventos novos. A Justiça Penal continua seu caminhar, inabalável. Apesar de ninguém querer, em uma festa descomunal como o carnaval, podem acontecer alguns percalços. Evite andar sozinho nas ruas. Não se vitime. Não saia de casa sem uma documentação comprobatória de quem é você. Evite quaisquer espécies de confusões. Engula os desaforos. Caso seja preciso, leve–os para casa embalados para presente. Chame a polícia sempre que precisar. Porém, principalmente, saiba que a Justiça Penal não tem um banco de dados das coisas boas que os cidadãos já fizeram na vida. Ao inverso. Conheci uma pessoa que guiava a vida por conta do sangue que possuía. Por ter sangue do tipo O negativo, doava constantemente. Não bebia álcool em hipótese alguma, não fumava, não trocava de parceira sexual, evitava tomar remédios, mantinha uma dieta rica em frutas, verduras e fibras. Fazia tudo que os médicos indicavam para que o sangue pudesse ser doado da melhor forma possível. Doação de sangue, melhor chamar de caridade invisível. A pessoa sempre indicava um Quero que a pessoa que receba meu sangue sinta minha bondade, meu amor, meu carinho. Contou-me, entre uma lágrima e outra, que já houvera doado mais de quarenta vezes na vida. Além disso, ajudava no orfanato do bairro, cheio de crianças com mães, sem pais, sem paz. Já havia quinze anos de auxílio. Doava roupas, comida e tempo. Lavava os banheiros, limpava a calçada, varria as sujeiras. Mas, infelizmente, foi preso por, supostamente, ter entrado em luta corporal com outra pessoa. Disse, para mim, um Não tive culpa, ele estava louco de drogas. No entanto, imediatamente, como em um passe de mágica, tornou-se “Beto Calango”. As alcunhas são colocadas para haver uma despersonalização do ser humano. Há, até, pasme, local no questionário policial no afã de indicar qual é o vulgo das pessoas. Quando não existe, certamente, é inventado. Imediatamente, foi constatada a existência, nos bancos de dados da Justiça Penal, que “Beto” havia brigado outras vezes, há alguns anos, quando quase adolescente ainda. Foi o bastante. Sentando de cuecas no canto da sala barulhenta. Cabisbaixo, envergonhado, triste. Pessoas passavam e nem notavam o ser humano caridoso, bondoso e meigo que jazia no canto sujo da repartição pública, lugar de serviço ao público. Brigara por conta de um desaforo qualquer. No entanto, insisti eu, sem entender, Por que você brigou Roberto? Por que não renunciou a essa identidade de lutas corporais? Sem querer ser chato Doutor, nem querer interromper a sua conversa com este homem, disse-me um dos policiais presentes, você conhece esse homem profundamente? Respondi um Eu nem me conheço profundamente, policial...faço análise nesse sentido, ora. Como irei conhecer um outro ser humano com a profundidade que você indica na sua pergunta? Ah...por isso, respondeu, maneando a cabeça e saindo. Colocado no xadrez, sem direito a elucidar as vezes que tinha feito bem à sociedade, Roberto ficou encarcerado tempo bastante para qualquer um. Após amealhar documentos e carteiras de identificação, comprovantes de residência e de trabalho, não consegui juntar ao pedido as inúmeras maneiras do seu serviço, com galhardia, hombridade e amor à sociedade através da caridade, tão desejada atualmente. Não consegui identificar quem teve, por conta do sangue de Roberto, conseguido uma sobrevida. Não tive forças para alcançar a filha que teve mais um tempo de vida perto do genitor, adoentado, necessitado de sangue. Não vi seu sorriso de agradecimento, não senti seu abraço de “muito obrigada.” Ninguém perguntou qual bebê foi salvo porque teve, no momento da necessidade, sangue fresco, saudável, forte. Nenhuma declaração foi feita pelas crianças do orfanato inominado. Nenhum pai deu sua deixa, nenhuma mãe agradeceu com algum testemunho. Ninguém indicou ter sido ajudado. Ninguém. Roberto invisivelmente ajudou. Invisível permanece. Nada há nos bancos de dados da Justiça Penal que comprovem as argumentações de responsabilidade social indicadas acima. Quanto houve de equilíbrio à sociedade oriundo das mãos de Roberto? Quantas lágrimas foram secadas por conta do trabalho caritativo no orfanato? Quantos sorrisos fizeram existência por razão das noites bem dormidas e equilíbrio na vida para ocorrer as doações de sangue? Quase soa como chalaça ter doado sangue e ajudado em orfanato. Isso não é contado na Justiça Penal. Isso soa como “testemunho de canonização”, como alguns costumam falar quando há uma testemunha, no processo penal, que nada sabe a respeito dos fatos indicados na petição inicial da ação penal mas indica a bondade existente do acusado. Tempo enterrado em lembranças sorridentes de crianças sem identificação. Incontadas. Inexistentes para a Justiça Penal. O carnaval não fala a verdade em sua etimologia. Nem tudo vale pela carne. Nem tudo vale pelo sangue de seres humanos. Devemos criar um banco de dados das pessoas que equilibram a humanidade. Mostrando as vezes que atos bondosos foram feitos, sem pieguice, objetivamente. Elas doam dinheiro, roupas, tempo, sangue. Dão a si mesmas, através de inúmeras atuações, no azo único de equilibrar a sociedade. Isso merece um cumprimento respeitoso. O mínimo de atuação da Justiça Penal é ponderar, quando há o erro, os acertos existentes em a vida do ser humano alcançado pela força penal. Talvez o sangue que corra nas veias daquele inquieto policial seja de “Beto Calango”, de alguma doação perdida no tempo. Talvez não. Ainda concordo com Antônio Vieira, em um de seus sermões, “Quando o homem foi bom e é ruim, julgam ele pelo que é. Quando foi ruim e é bom, julgam ele pelo que foi. Quando foi bom e é bom, julgam pelo que poderá vir a ser”.